MAYA DEREN E A CONCEPÇÃO DO TEMPO

Sofia Só

Esta curta-metragem, e o ensaio que a acompanha, propõe um mergulho na estética e linguagem do cinema de Maya Deren, figura central do cinema experimental nas décadas de 1940 e 1950. Através da análise de Meshes of the Afternoon e At Land, analiso e trabalho os aspetos de montagem, repetição, fragmentação e o papel do corpo feminino como sujeito ativo da imagem. O trabalho constrói um diálogo entre a obra de Deren e a minha própria prática artística, incorporando elementos como a reversão temporal, os planos espelhados e a fluidez entre sonho, memória e espaço dissociado. A curta não se pretende apenas como homenagem, mas mas como um gesto de continuidade entre a linguagem de Deren e a minha própria estética, marcada pela dissociação, o autobiográfico e a fragmentação do ser.

INTRODUÇÃO

Pioneira do cinema experimental, Maya Deren tornou-se numa das figuras mais influentes deste estilo cinematográfico. Quando descobri a sua obra, senti de imediato uma profunda conexão com a sua arte, a sua estética e modo de trabalhar o tempo e a imagem estão de diversas formas interligadas àquilo que procuro explorar também nas minhas próprias criações. Desde então, Deren tornou-se para mim um exemplo.

Nos seus filmes, temos presente uma exploração profunda da percepção humana e da experiência do tempo. Através de filmes como Meshes of the Afternoon (1943) e At Land (1944), Deren desafia a linearidade temporal e narrativa, fragmentando a realidade e dando lugar a uma lógica poética. Esta desconstrução do tempo é um dos aspetos mais fascinantes da sua obra, reflete não só a fluidez da mente humana, como também os próprios limites do cinema.

Neste ensaio, proponho uma análise da estética de composição e da montagem nos filmes de Deren, explorando como estas técnicas contribuem para a construção de um universo íntimo e sensorial. O ensaio acompanha e serve de base à curta metragem que realizei e aqui apresento. Tal como Maya Deren, optei por me colocar no centro da narrativa visual, assumindo o papel de protagonista do mundo que concebi. Esta escolha surge como um gesto de diálogo com a sua obra, mas também como uma forma de reivindicar a minha própria experiência através da linguagem do cinema experimental.

MAYA DEREN E O CINEMA EXPERIMENTAL

Maya Deren é uma das figuras centrais do cinema de vanguarda nos Estados Unidos nas décadas de 1940 e 1950. Nascida em Kiev, na Ucrânia, em 1917. Eleonora Derenkovskaya (o seu nome verdadeiro), emigrou com a sua família para os EUA em 1922. A sua trajetória artística é marcada por uma impressionante diversidade de interesses: bailarina, coreógrafa, poeta, fotógrafa, escritora e pesquisadora, realizadora, atriz, roteirista, montadora, performer e produtora. O seu contributo foi decisivo para o desenvolvimento de um cinema verdadeiramente experimental, tanto em termos formais como filosóficos.

A sua obra inclui títulos marcantes como Meshes of the Afternoon (1943), At Land (1944), A Study in Choreography for Camera (1945) e Ritual in a Transfigured Time (1946). Nestes filmes, Deren questiona a lógica narrativa tradicional e explora um cinema de sensações e simbolismos, onde o ritmo e a composição visual substituem a linearidade do enredo. A sua formação em dança foi essencial para o desenvolvimento da sua abordagem coreográfica da câmara, o movimento do corpo e da câmara fundem-se, criando uma linguagem onde espaço e tempo são moldados poeticamente.

A questão do feminino está também fortemente presente no seu trabalho, não como mera adesão às lutas da época, mas como uma investigação profunda sobre a identidade da mulher num universo artístico e simbólico dominado por vozes masculinas. Maya Deren representa-se a si mesma nos seus filmes, como sujeito ativo e fragmentado, explorando temas como a repetição, a alienação e o desejo. O seu cinema propõe uma crítica implícita à representação passiva da mulher no cinema clássico, ao mesmo tempo que constrói novos modos de habitar o tempo e o espaço cénico.

Considerado a sua obra prima, Meshes of the Afternoon (1943), foi produzido em plena Segunda Guerra Mundial, em colaboração com Alexander Hammid, o seu segundo marido, o filme apresenta uma atmosfera densa, saturada de inquietação e paranóia. A narrativa gira em torno de uma mulher que se multiplica em várias versões de si mesma, presa num ciclo repetitivo, onde os objetos ganham peso simbólico (a chave, a faca, a flor) e a figura encapuzada com um espelho no lugar do rosto representa o confronto com o Eu fragmentado.

Meshes of the Afternoon é silencioso, sem diálogos nem som direto. O ritmo surge da montagem, a fluidez entre espaços e superfícies. A repetição de cenas e a sua composição estruturam o filme de forma a que o conceito de tempo deixe de existir, tanto Maya como o espectador se encontram presos num “loop” infinito, um sonho cíclico impossível de escapar. A figura que vemos encapuzada e sem rosto, remete para uma crise de identidade e para o colapso da lógica da narrativa convencional.
A base do cinema de Maya Deren está no entrelaçamento entre o formalismo visual e a subjetividade psíquica. Os seus filmes não se organizam a partir de enredos tradicionais, mas sim de atmosferas, ritmos

internos e imagens simbólicas. Trata-se de um “cinema de poesia”, como ela mesma propôs, no qual a montagem e a composição seguem uma lógica emocional, intuitiva, quase ritualística. As personagens, muitas vezes interpretadas por ela própria, atravessam espaços fragmentados e fluidos, como se habitassem dentro de um espaço de sonho ou memória. “O filme se apropria da realidade para construir a realidade da cena – do sopro natural do vento nos cabelos, a irregularidade das ondas, a textura das pedras e da areia – resumindo, tudo que não se pode controlar. Os elementos espontâneos que são propriedades da própria realidade” afirma a artista em seu livro Cinematography: The Creative Use of Reality.

DIÁLOGO COM O ENSAIO VISUAL

A curta-metragem que acompanha este ensaio estabelece um diálogo direto com os dois filmes analisados, incorporando elementos da linguagem poética de Deren na construção de uma realidade fragmentada. Através da manipulação do espaço e da montagem não-linear, propõe-se um exercício de introspeção visual que convida o espectador a questionar a estabilidade da identidade e a natureza do tempo.

Assim como Deren, coloco-me como figura central do filme — não apenas como intérprete, mas como presença ativa num universo simbólico. Planos espelhados e composições simétricas evocam o inconsciente e o confronto com a própria imagem. A fragmentação do corpo e do espaço, o uso de reversão de imagem (por exemplo, o mar a recuar para dentro de si mesmo) constroem uma atmosfera de sonho ou memória. O filme convida o espectador a entrar num espaço que existe, mas não nas condições do real
— como no momento em que um corpo surge na areia: que corpo é aquele? que lugar é este? o que significa o mar andar para trás?
Essas perguntas não são respondidas de forma direta — tal como nos filmes de Deren, o espectador é convocado a habitar na dúvida, a permanecer num estado de contemplação inquieta. Tanto a personagem como o espectador são presos à narrativa daquele mundo, ambos são envolvidos por uma lógica sensorial e simbólica. A curta propõe-se como um exercício de “cinema de poesia”, onde a montagem é mais do que técnica — é uma forma de pensamento.

A obra de Maya Deren permanece, até hoje, como um marco incontornável do cinema experimental, não apenas pela sua inovação formal, mas pela capacidade de integrar corpo, mente e imagem numa linguagem cinematográfica profundamente pessoal e transformadora. Através de Meshes of the Afternoon e At Land, observa-se uma desconstrução radical das convenções narrativas e espaciais do cinema clássico.
Neste ensaio, procurei não só analisar os dispositivos formais e simbólicos que caracterizam a montagem e a composição nos filmes de Deren, como também dialogar com eles através da criação de uma curta- metragem autoral. Inspirada pela sua abordagem poética e pela presença ativa do corpo feminino enquanto sujeito da imagem, construí um espaço visual onde o tempo é fluido, os significados se
multiplicam e as perguntas não exigem respostas imediatas. A manipulação da imagem — seja através da reversão temporal, da repetição, ou da simetria — surge como estratégia para explorar os limites da identidade, da memória e da percepção.

Este projeto representa, por isso, mais do que um exercício “homenagem”: é um gesto de continuidade, e uma relação de Deren e a sua estética com a minha estética pessoal que também ronda muito a questão de dissociação, fragmentação do ser, o auto-biográfico. Ao filmar-me a mim mesma, num espaço entre o sonho e a consciência, procurei integrar as obras de Maya Deren numa linguagem pessoal que, tal como a dela, desafia os contornos fixos da narrativa. A herança de Deren é visível não só nas escolhas visuais, mas na possibilidade de pensar e criar fora das normas, um cinema onde a imagem evoca em vez de explicar diretamente.

O filme inicia-se com uma imagem simbólica: o mar a envolver-se em si próprio, como se o tempo recuasse, desafiando as leis naturais e anunciando uma viagem não-realista. Na areia, surge um corpo imóvel, perdido, quase anónimo, um vestígio de presença. Segue-se o aparecimento da protagonista feminina, também interpretada por mim, em estado de confusão e aparente fuga. Esta fuga é repetida em fragmentos, aproximando-se do ser, intensificando o sentimento de ansiedade e alienação. A repetição do gesto remete diretamente para a estrutura cíclica presente em Meshes of the Afternoon, onde a personagem se vê aprisionada num loop infinito impossível de escapar.

A fluidez da sequência é interrompida por um corte abrupto para o negro — uma quebra na continuidade narrativa que marca uma transição simbólica. O corpo transita para um novo espaço: da praia para uma paisagem de natureza, atravessada por uma queda espelhada, como se fosse uma passagem ritual entre estados de consciência. A protagonista encontra-se agora num território desconhecido. A sua desorientação é contrastada com a serenidade das águas, que fluem com calma, em oposição à sua busca intensa por respostas no novo ambiente. O olhar da câmara segue entre as árvores, revelando a tensão entre o exterior pacífico e o interior em conflito.

Num momento-chave, a protagonista encara diretamente o espectador. Este gesto de confronto e reconhecimento rompe a quarta parede e evoca o olhar reflexivo de Deren nos seus próprios filmes — uma confrontação silenciosa que devolve ao público o poder de interpretação. O filme encerra como começou: com o mar a envolver-se em si próprio, encerrando o ciclo e reforçando a ideia de que o tempo, neste universo poético, é um circuito fechado, feito de repetições e retornos.
Ao filmar-me a mim mesma, entre paisagens distorcidas e espaços simbólicos, explorei a fragmentação do ser, o deslocamento e o auto-biográfico, procurando integrar o legado estético de Maya Deren numa linguagem que também me pertence.

CONCLUSÃO

Este ensaio procurou analisar a linguagem cinematográfica de Maya Deren, centrando-se na montagem, repetição e fragmentação como elementos fundamentais do seu cinema. A partir da análise de Meshes of the Afternoon e At Land, e da realização de uma curta-metragem autoral, foi possível estabelecer um diálogo entre a obra de Deren e uma prática artística pessoal, marcada por temas como a dissociação, o auto-biográfico e a fluidez temporal. A curta, ao incorporar elementos visuais e rítmicos inspirados em Deren, não se limita a homenagear, mas propõe uma continuidade criativa, um exercício que faz questionar a identidade, espaço e tempo. Assim, o projeto reafirma o cinema experimental como um meio privilegiado para explorar a subjetividade e expandir os limites da narrativa tradicional.

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